
Crônica do ninguém, que passou um ano inteiro tentando ser alguém: Olhava em minha volta na sala de aula, em uma manhã de inverno, fria, via pessoas diferentes de mim, pessoas completas, via aquilo e pensava no meu vazio, no vazio que existia dentro de mim.
Perto da porta existia uma menina, de cabelos cumpridos e lisos, de olhos pretos e fundos, ela escrevia, escrevia e escrevia, parecendo prestar atenção a matéria que estava sendo dada, atrás dela, sentava um menino tão bonito quanto ela, ele era moreno e tinha olhos verdes, ambos usavam roupas bonitas, ele ao contrário dela, não prestava atenção, escutava música e mexia no cabelo liso e cumprido da menina, ao lado dela sentava outra menina, essa não era tão bonita, porém quando abria seu sorriso ela conquistava a toda e qualquer pessoa, ela simplesmente era dona de uma simpatia inexplicável.
Olhando mais para trás tinha os meninos do desenho, eu não sabia muito sobre eles, mas eles desenhavam bem.
A parte do meio da sala era tomada de patricinhas que passavam o dia falando de coisas fúteis, mas elas tinham uma coisa que eu não tinha, eu nem sabia o que era, mas elas tinham, estavam sempre rodeada de amigos, talvez fosse a beleza, ou o dinheiro, ou até a conversinha chata.
Perto das janelas, onde fazia mais frio ainda, ficava um grupo de meninas que nem de longe eram bonitas, mas elas eram inteligentes, simpáticas e muito comunicativas, mesmo sem conhece-las eu gostava delas.
E no meio de todas essas pessoas, existia eu, que queria ser bonita e inteligente como a menina de cabelos cumpridos, simpática como a amiga da menina bonita, desenhista como os meninos do fundo, fútil, rica e cheia de amigos como as patricinhas, e comunicativa como as que sentavam perto das janelas.
Em meio a tudo isso passei a prestar atenção em um detalhe, só fazia tão frio pra mim, qual era o meu problema?
Todos os dias eu assumia uma identidade diferente, e nunca consegui me igualar a nenhuma das tribos, enquanto as tribos se misturavam eu continuava vazia nas frias manhãs de agosto. Já era agosto, o tempo passava correndo, correndo por mim.
Passei o ano tentando ser alguém, alguém que viesse a ser percebida pelo resto da turma, até para os professores eu era invisível, eu que nunca fui a mais inteligente, a mais bonita, a mais simpática, a mais legal e muito menos a mais comunicativa, eu que sempre tive fobia de comunicação.
Setembro chegou e as manhãs ficavam mais quentes, as manhãs dos meus colegas, não as minhas.
Enfim dezembro, porém em dezembro tinha o amigo secreto... e o que eu falaria daquelas pessoas que eram desconhecidas pra mim? o que elas falariam de mim?
Eu tirei a menina bonita e inteligente de cabelos lisos e cumpridos, eu ia falar isto dela? - eu era vazia, e meu vazio não me deixava nem ajudar a preencher alguém -
O menino que escutava música, era bonito e mexia no cabelo da menina de cabelos lisos e longo me tirou no amigo secreto e disse: - 'a minha amiga secreta, é uma incógnita pra mim, e eu verdadeiramente queria saber quem ela é, ela é simplesmente diferente, e os olhos claros dela não transparecem nem um pouco sobre o que ela tem ai dentro, ela é fascinante.'
Eu uma incógnita? eu não... eu era vazia.
Tinha chegado a minha vez, e agora?
'a minha amiga secreta, eu não a conheço muito bem, porém sei que por trás de seus olhos escuros ela consegue transparecer muito mais do que ela é, do que eu no meu cristalino azul' - eu disse.
Ela me abraçou, e enquanto me abraçava ela cochichou baixinho: - o seu azul é muito mais bonito que o meu preto, porém o meu preto é mais claro, o melhor de mim e o melhor de você está no mesmo lugar, com cores opostas.
Foi quando me dei conta que a incógnita e fascinante aqui não era vazia, ela simplesmente buscava ser os outros, e desse jeito ela seria sempre ninguém, pois só se vira alguém, quando se aceita o eu, deste dia em diante as aulas ficaram mais quentes, até mesmo pra mim.